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quinta-feira, 26 de janeiro de 2012
formigas
Desempregado, mal amado, sem filhos por quem lutar, apoderou-se dele uma melancolia sem fim. Não aquela dos poetas, inspiradora e catártica, antes uma modorra que lhe destruía a vontade. A sua vida fora um fiasco. Um casamento falhado, profissional substituído por jovens com novos métodos e novos saberes. No sofá de orelhas, desgastado pelo tempo, sentiu-se medíocre, pequeno, prescindível. Olhou para a garrafa de whisky e para os comprimidos e sorriu. Bebeu até chegar a um estado de torpor. Encheu a boca de comprimidos e bebeu um longo golo. D. Emília, a mulher a dias, encontrou-o dias depois, na limpeza semanal. A garrafa vazia e tombada, o corpo rígido, a TV ainda ligada. O jornalista falava sobre um engarrafamento que adiava a chegada de milhares de formigas operárias ao local de trabalho.
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sexta-feira, 6 de janeiro de 2012
O divórcio de António
O divórcio foi para António, mais do que um renascer, uma libertação. A sua ex-mulher, com manias de intelectual e traços obsessivos, há muito que, como um buraco negro, lhe havia tragado a luz e o brilho.
E António era um profissional de sucesso, respeitado, um homem bem-parecido, que apesar dos seus 45 anos, corporizava os sonhos femininos. Alto, magro, tez morena e olhos claros, feições finas, um ar vagamente entre o artista e a estrela rock. Liberto das grilhetas das obrigações familiares e conjugais, António viveu durante anos uma vida dissoluta. Ninfetas pouco mais velhas que as suas filhas, modelos, jovens artistas fascinadas com a sua sensibilidade, todas passarem pelo seu leito.
Os amigos, com genuína admiração e alguma inveja, aconselhavam-no a procurar poiso certo. Preferia as ligações sem compromissos, jogos de sedução inconsequentes, avançou sempre enebriado para um vórtice de mulheres cada vez mais jovens, mais sedutoras.
O brilho esmoreceu, a idade avançou, o reconhecimento profissional foi decrescendo à medida que surgiam novos talentos. Vê-se agora António só, na sua enorme casa, entre livros raros e obras de arte criteriosamente seleccionadas. Enfadado, avança entre canais, relembrando com um sorriso ainda sedutor, o que lhe haviam dito amigos: "A idade torna-nos mais exigentes e menos desejáveis."
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quinta-feira, 29 de dezembro de 2011
Série B
Circulo lentamente pela velha Nacional 202, que me levará de Valença a Monção. Ouço música alto, os Green Day e o seu manifesto anti-Bush, "American Idiot". Do lado esquerdo um reclamo luminoso, pisca, anunciando "London - Bar-Disco". Tem um largo que serve de parque de estacionamento. Inverto a marcha e estaciono. De perto o néon é ainda mais triste. Bato à porta e sou atendido por um tipo de farto bigode, e que, num fato preto um número abaixo do indicado, se assemelha mais a cangalheiro do que a porteiro de bar. Olha-me de cima a baixo e passa-me para a mão um cartão. Em ambientes estranhos, como fera acossada, procuro sempre um canto. Pelo bar circulam matronas avantajadas em vestidos reduzidos. Faço sinal ao barman e peço um uísque universal, Cutty Sark. No centro uma pista de dança circular, a bola de espelhos, luzes diversas e o clássico varão de strip-tease. Nela abanam-se languidamente três mulheres, já todas passaram dos 35. Saracoteia-se também um sessentão barrigudo que convive com o à-vontade dos clientes habituais. Ainda antes de começar a beber aproxima-se um rapariga pequena e roliça, com um ar mestiço.
- Cê quer companhia, me paga uma champagne?
Educadamente declino, digo que apenas quero beber um copo sossegado.
- OK, cê é qui sabi.
E sai dali abanado um reconchudo rabo, como que a exibir o que estou a desperdiçar. Pelo canto do olho noto olhares vigilantes, conversa baixa, a comentar a minha presença. Não deve ser habitual ter viajantes por aquele pardieiro. Bebo rapidamente o segundo uísque e saio de um ambiente sufocante que tresanda a suor, tabaco e perfume barato. É universal a procura de sexo. Mas no meio do Alto-Minho, um bar de nome London, cheio de alternadeiras brasileiras, parece um cenário de filme série B. Acelero, feliz por ter sido figurante.
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domingo, 25 de dezembro de 2011
Madame Cruz
Madame Cruz viveu sempre num mundo de sonho. Casa de sonho, carro de sonho, família de sonho. Um dia, o sonho desmoronou-se. O divórcio bateu-lhe à porta e a sua vida outrora grandiosa, tornou-se um pouco menos resplandecente. Madame não necessita de dinheiro, mas escasseiam-lhe os afectos. Provavelmente por razão do seu feitio tumultuoso, inevitavelmente pelos caminhos sinuosos que a vida toma. Passa temporadas nos trópicos em ilhas de ricos, onde todos os seus caprichos são satisfeitos. Ocasionalmente é seduzida por um call-boy, pensa ela por ser desejável, apesar dos seus 65 anos. Madame sabe que é um jogo de luz e sombra, sabe que jovens vigorosos nunca a procurariam se não tivessem presentes em troca de uma noite de amor. Mas adora enganar-se, fingindo que ainda é procurada por ser magra e elegante. E o rapaz e Madame entregam-se como se ambos fossem jovens, como se tudo aquilo fosse libido e não fingimento. Madame Cruz não dispensa as suas férias tropicais.
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domingo, 18 de dezembro de 2011
A Espanhola
As mulheres mais bonitas que já vi são espanholas. São uma mescla racial fabulosa, pois adicionam ao ibérico trigueirismo traços e características dos celtas e demais povos do norte. Com relativa frequência essas raparigas morenas possuem penetrantes olhos claros. Uma síntese próxima da perfeição.
São festeiras, sedutoras, descontraídas. Marcam um enorme contraste com as tímidas portuguesas. Trazem o flamenco, o salero no sangue e exibem-no com despudor. A medievalmente celebrada mulher branca sempre me assustou, tão frágil que a porcelana se assemelha, marcada por veias que mais parecem arroxeados riscos. Dêem-mas morenas, de olhos claros, magras e de pernas compridas e vereis a mulher com a aparência ideal.
Há aqui no prédio mulher dessa casta. Muito alta, elegante, morena e de olhos claros, ora simpática e conversadora, ora ausente e absorta. Dizem que é médica, que é solteira. Pouco importa. É uma mulher que já dobrou a casa dos 40 e continua a ser muito bonita. Isso basta.
São festeiras, sedutoras, descontraídas. Marcam um enorme contraste com as tímidas portuguesas. Trazem o flamenco, o salero no sangue e exibem-no com despudor. A medievalmente celebrada mulher branca sempre me assustou, tão frágil que a porcelana se assemelha, marcada por veias que mais parecem arroxeados riscos. Dêem-mas morenas, de olhos claros, magras e de pernas compridas e vereis a mulher com a aparência ideal.
Há aqui no prédio mulher dessa casta. Muito alta, elegante, morena e de olhos claros, ora simpática e conversadora, ora ausente e absorta. Dizem que é médica, que é solteira. Pouco importa. É uma mulher que já dobrou a casa dos 40 e continua a ser muito bonita. Isso basta.
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domingo, 11 de dezembro de 2011
O Amante
É um tipo discreto, silencioso, normal na aparência e cortês no trato. Nunca se lhe ouve que não um assentimento às palavras da sua amada. Ela brilha, abraça efusivamente, expõe ideias, cita os clássicos, enternece as crianças e seduz os homens. Ele, para se deslocar, arrasta-se junto às paredes com medo de ser arrastado para aquele turbilhão de afectos, de corpos que se abraçam, de beijos e carinhos que se trocam. Um exercício que me diverte, é imaginá-los no leito conjugal. Inverter-se-ão os papéis? Será ele o maestro fazendo uso da viril batuta, com talento inimaginável? E a minha mente perversa, entretêm-se a imaginar como se transmutam entre lençóis estas relações improváveis.
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segunda-feira, 5 de dezembro de 2011
O meu primeiro pipi
Estranhas insónias e mecanismos de memória que cada vez mais me aproximam dos de um velho, fazendo presente o passado e negligenciando as memórias dos tempos que correm. Episódio de intimidade que conto hoje. Fui criado no centro do Porto, junto a uma velha quinta que ainda hoje subsiste. Por detrás dos portões da Quinta da Aurifícia escondia-se um mundo rural no centro da cidade. Uma exploração agrícola rudimentar que fornecia de vegetais e flores uma clientela de proximidade. Castanheiros, ameixoeiras, vinha, diospireiros, a quinta tinha de tudo em pequenas quantidades. Aqueles três ou quatro hectares rurais, perdidos na cidade, eram um mundo que me agradava sobremaneira explorar.
Era acompanhado muitas vezes por uma vizinha da minha idade, a expedita Ana Maria. Aos 7 ou 8 anos o interesse sobre o sexo oposto dava os primeiros passos. Gastando muitos e bons argumentos, lá consegui que a Ana Maria expusesse a sua intimidade, mostrando-me o seu pipi. Momentos exaltantes em que todo eu tremia, num misto de medo, desejo e infantil libidinosidade. Foi o primeiro pipi que vi, claramente visto. A coisa foi-se repetindo, até ao dia em que também ela queria ver como era uma pilinha. Vergonha e uma eventual consciência dos meus parcos dotes, levaram-me a abdicar desses prazeres secretos, partilhados na zona dos castanheiros. Marca que me ficou até hoje, pois nos dias invernosos e frios como o de hoje, após o banho matinal ainda prefiro sair de tolha enrolada à cintura a exibir a minha encolhida masculinidade.
Era acompanhado muitas vezes por uma vizinha da minha idade, a expedita Ana Maria. Aos 7 ou 8 anos o interesse sobre o sexo oposto dava os primeiros passos. Gastando muitos e bons argumentos, lá consegui que a Ana Maria expusesse a sua intimidade, mostrando-me o seu pipi. Momentos exaltantes em que todo eu tremia, num misto de medo, desejo e infantil libidinosidade. Foi o primeiro pipi que vi, claramente visto. A coisa foi-se repetindo, até ao dia em que também ela queria ver como era uma pilinha. Vergonha e uma eventual consciência dos meus parcos dotes, levaram-me a abdicar desses prazeres secretos, partilhados na zona dos castanheiros. Marca que me ficou até hoje, pois nos dias invernosos e frios como o de hoje, após o banho matinal ainda prefiro sair de tolha enrolada à cintura a exibir a minha encolhida masculinidade.
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sexta-feira, 25 de novembro de 2011
Um mundo perfeito
O seu mundo permanece simples, sem zonas cinzentas. Apenas existem maus e bons. A maldade é ficção, inexistente no dia-a-dia. Coisa de bruxas e feiticeiros, cruzando mundos mágicos. Palra sem parar, inventando "estórias" em que é simultaneamente heroína e vilã. Quero prolongar essa ilusão enquanto for possível, partilhar esse sítio perfeito em que o bem prevalece e o mal é sempre castigado. Adormece enroscada enquanto lhe conto baixinho sobre belas princesas, anões corajosos e gigantes bonacheirões.
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sou pai
quinta-feira, 17 de novembro de 2011
Tarantinada
O assalto tinha sido cuidadosamente planeado. O ourives saía de casa todas as quintas, com o material das encomendas. Faria a distribuição das peças durante a manhã. Com sorte, poderiam gamar 50.000 €. Dificilmente o receptador lhes daria mais de 15.000 €. Que se foda! Dava para dar algum à velha, comer marisco, comprar xamon e cheiro para 2 meses. O Rodrigues e o Segal eram gajos experientes e já tinham passado por Custóias, Chaves e Paços de Ferreira. Gabavam-se de ter mantido a peida incólume nas suas estadias nestes estabelecimentos de referência.
O Zeca, dentro do segundo carro segurava nas mãos trémulas uma Beretta 9 mm. O ourives saíu à hora prevista, abrindo os portões automáticos da vivenda. Olhou para o lado. Era o Jonas, uma besta de 100 kilos, que se gabava de comer três francesinhas depois de 2 horas no ginásio. O sinal. O Jonas engrena a marcha-atrás. No momento em que acelera para atravessar o Punto gamado, o filho da puta dá gás a mais e choca com um carro estacionado. Ouve-se um estrondo seguido de um estalido e dois sonoros foda-se!. O Zeca com o impacto tinha acabado de disparar sobre o próprio pé.
O ourives apercebe-se da armadilha e serpenteia entre o Punto batido e o passeio. O Segal vinha no seu encalço. Pelas ruelas de Gondomar iniciam uma perseguição destinada ao fracasso. O cabrão tinha um Mercedes, bem mais rápido que o Punto e Saxo perseguidores. Curva, contra curva, chiadeira dos pneus, quando, de repente aparece um carro Nivea. A bófia, caralho, recua, recua!!! O Jonas abandona o chaço e desata a correr rua fora, tão depressa que os calcanhares lhe batiam no cu.
O Zeca sai do carro e manca, com um buraco no pé que quase dava para ver o asfalto. Polícia! Alto ou disparo! Puta de sorte, nem ouro, nem nada e a bófia ali a gritar. Zeca atirou para longe a velha Beretta. A puta disparou. A polícia também. E o Zeca caiu, lentamente, de joelhos, olhando incrédulo para o buraco no peito e estranhando a chiadeira que fazia enquanto respirava.
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terça-feira, 8 de novembro de 2011
Wella
O restaurante onde almoço ao sábado é de uma espécie única. Um cruzamento entre cervejaria, hamburgeria e restaurante tradicional. A clientela não podia ser, tal como o restaurante, mais heterogénea. O pai e a filha, famílias inteiras, idosos e malta universitária, trabalhadores, um autêntico observatório. Gosto de ambientes assim, onde a espécie humana se revela variada. A rapariga bonita falava calmamente com uma amiga. Alta, magra, perna comprida, rabo pequeno e firme, rosto com excesso de maquilhagem. A denunciar a profissão de cabeleireira, uma t-shirt Wella Professionals. Falava baixo. De repente, tirou um maço de cigarros e começou a batê-lo como se estivesse a exorcizar algum demónio. Pás, pás, um ruído incomodativo e desnecessário, uma vez que a Tabaqueira é conhecida por compactar apropriadamente o tabaco. Perante uma qualquer observação, solta um sonoro fuáda-se. Ele há lá melhor maneira de desfazer um relativo encanto do que ouvir uma donzela soltar um fuáda-se!
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sábado, 5 de novembro de 2011
O Bruxo
O bruxo tinha ar de beato. Baixo, cabelos brancos e voz nasalada, falava sempre no mesmo tom. Era suposto ter um qualquer dom que lhe permitia exorcizar fantasmas, traumas e maus olhados. Porque pressentiu terreno pouco fértil para as suas aldrabices, nunca ousou interpelar-me que não para uma conversa informal. Dezenas de enganados acreditavam na sua mediunidade, na capacidade de fazer trabalhos que só um psiquiatra seria capaz. Mandou-os andar às voltas em igrejas esconsas, repetir rezas arcaicas, beber água inquinada, apanhar lagartixas.
As minhas desconfianças tornaram-se realidade. O bruxo não passava de um reles abusador. Descoberta a marosca e um par de estalos depois, o místico foi pela sarjeta abaixo. Que é o local onde os ratos devem estar.
(Inspirado numa história verídica)
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quinta-feira, 3 de novembro de 2011
Respeitosamente
Fisicamente eram seres antagónicos. Ela era baixa, magra, loura, com os olhos claros e a pele branca, muito branca, como a daquela gente que nunca se expõe ao sol. Ela era alto, moreno, pesadão, ligeiramente careca, com uma voz tronitruante. Ficara viúva muito cedo, conquistando com o seu trabalho de administrativa um futuro melhor para o único filho. Ele herdara a mercearia do pai. Desistira de estudar para trabalhar como marçano, aguardando pacientemente que a velhice ou a morte lhe proporcionassem o que era seu por direito.
Na loja, entre batatas, cebolas, arroz e fruta da época, as suas mãos tocavam-se. No estreito daquele espaço, os corpos roçavam-se, como sem querer. Havia as piadas, mais ao menos óbvias, sobre as frutas e legumes, sempre de cariz sexual, numa insinuação nunca integralmente proferida.
Num dia, ao debruçar-se sobre ela, sentiram a inevitabilidade. Encaminhou-a para as traseiras da mercearia. Colocou-a em cima de um pequeno balcão. Calças para baixo, saias para cima, fizeram-no com urgência. Não se tratava de amor, mas da necessidade de matar aquele desejo tantas vezes vislumbrado.
Ela nunca mais foi às compras à loja do Sr. Manuel. No entanto, quando se cruzam na rua, cumprimentam-se. Respeitosamente.
Na loja, entre batatas, cebolas, arroz e fruta da época, as suas mãos tocavam-se. No estreito daquele espaço, os corpos roçavam-se, como sem querer. Havia as piadas, mais ao menos óbvias, sobre as frutas e legumes, sempre de cariz sexual, numa insinuação nunca integralmente proferida.
Num dia, ao debruçar-se sobre ela, sentiram a inevitabilidade. Encaminhou-a para as traseiras da mercearia. Colocou-a em cima de um pequeno balcão. Calças para baixo, saias para cima, fizeram-no com urgência. Não se tratava de amor, mas da necessidade de matar aquele desejo tantas vezes vislumbrado.
Ela nunca mais foi às compras à loja do Sr. Manuel. No entanto, quando se cruzam na rua, cumprimentam-se. Respeitosamente.
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segunda-feira, 31 de outubro de 2011
Anatomia do desejo
Caminhamos de mão dadas. Através do decote discreto, pressinto-te os seios generosos e firmes. E, num segundo, recordo com desejo redobrado as vezes em que fomos um corpo só, quente, vibrante e húmido, partilhando o êxtase. Não é passado, presente ou futuro é todo um momento que se eterniza, quando exaustos nos abraçamos num profundo silêncio. E tremo de prazer, satisfação e orgulho. Tantos anos depois quero-te ainda mais.
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sábado, 29 de outubro de 2011
Eugénio
O Eugénio é um homem de meia-idade, com um rosto que exprime bondade e simplicidade. Sobreviveu a uma infância difícil, uma doença destruidora, construiu com amor uma família que agora vê desmembrada. A sua única filha, terminados os estudos, apenas encontrou trabalho na capital. E o Eugénio anda como uma alma penada, em busca da cria que já não volta. Sente um vazio, olhando o quarto intocado. Suspira pelos fins-de-semana em que a terá de regresso. "É uma tristeza sem fim", confessou. E, num gesto de rotina, todas as noites vai espreitar a divisão desocupada, com a secreta esperança que o tempo tenha parado, e a jovem ainda esteja sentada, à meia-luz, batendo vigorosamente no teclado.
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sexta-feira, 30 de setembro de 2011
A velha Singer (*)
Tinha olhos azuis, claros como a água, quase translúcidos. Olhando fixamente através deles conseguia ver-lhe a alma. Filha de um barbeiro que tinha ganho dinheiro no Brasil, nem o facto de ter uma vida mais confortável do que a pobreza generalizada da aldeia a livrou da escolaridade mínima. As mulheres naquele tempo eram para estar em casa. Com a 4ª classe já sabiam do mundo das letras tudo o que poderiam ambicionar. Ajudou a criar os mais novos, trabalhou no campo, aprendeu a fazer manteiga e queijo.
Com 18 anos casou-se com José. José era filho de um mestre carpinteiro e desde os 10 anos ajudava o pai na oficina de carpintaria de que este era proprietário no Porto. Quis romper com os limites que lhe eram impostos e estudou à revelia do pai, durante a noite. Acabou a escola comercial, mas todos os fins-de-semana regressava às origens. Conheceu Conceição, apaixonaram-se e casaram. O primeiro filho do casal apenas resistiu 24 horas a um mundo cruel. Estranhamente, com o seu quê de mórbido e veneração, conservou até ao fim do seus dias uma fotografia do bebé. A fotografia a preto e branco era de um bébe vestido com um gorro. Foi fotografado já morto. Mas este filho que passou pela sua vida como um cometa era sempre considerado o seu primeiro filho. Tive dois filhos, um não vingou, dizia.
Trabalharam na Exposição Colonial do Porto e quando reuniram dinheiro, Conceição comprou uma máquina de costura Singer. Tinha aprendido costura como todas as miúdas da sua idade, mas sempre revelara talento para as linhas e colchetes. A Singer era, mais do que o seu instrumento de trabalho, o seu passaporte para a independência financeira. Tinha uns cartões impressos que raramente entregava. Conceição Lopes, Modista. O quarto que reservou para atelier de costura era visitado por senhoras abastadas, que pretendiam a reprodução de vestidos que viam na Burda alemã, uma espécie de Vogue para gente discreta. A Madame Queiróz, holandesa, com um marreca nas costas e mau feito era uma das suas clientes favoritas. Trabalhava, fumava, era igual ao marido português. Isto despertava em Conceição uma secreta admiração. D. Alice, mulher de um abastado industrial de Famalicão era também uma amiga. De personalidade fraca, Conceição adorava convencê-la a escolher o que achava que lhe assentava bem, deixando-a certa de que a escolha final tinha sido sua. Até aos 70 e muitos anos trabalhou na sua costura e ganhou para os seus alfinetes, como costumava dizer. Nos últimos anos já o fazia mais por amizade e hobby do que por dinheiro. A velha máquina Singer resistiu sempre. A Conceição, a idade foi retirando a precisão dos gestos de modista.
(*) Dedicado à minha avó Conceição, dos olhos azuis e da alma transparente.
Com 18 anos casou-se com José. José era filho de um mestre carpinteiro e desde os 10 anos ajudava o pai na oficina de carpintaria de que este era proprietário no Porto. Quis romper com os limites que lhe eram impostos e estudou à revelia do pai, durante a noite. Acabou a escola comercial, mas todos os fins-de-semana regressava às origens. Conheceu Conceição, apaixonaram-se e casaram. O primeiro filho do casal apenas resistiu 24 horas a um mundo cruel. Estranhamente, com o seu quê de mórbido e veneração, conservou até ao fim do seus dias uma fotografia do bebé. A fotografia a preto e branco era de um bébe vestido com um gorro. Foi fotografado já morto. Mas este filho que passou pela sua vida como um cometa era sempre considerado o seu primeiro filho. Tive dois filhos, um não vingou, dizia.
Trabalharam na Exposição Colonial do Porto e quando reuniram dinheiro, Conceição comprou uma máquina de costura Singer. Tinha aprendido costura como todas as miúdas da sua idade, mas sempre revelara talento para as linhas e colchetes. A Singer era, mais do que o seu instrumento de trabalho, o seu passaporte para a independência financeira. Tinha uns cartões impressos que raramente entregava. Conceição Lopes, Modista. O quarto que reservou para atelier de costura era visitado por senhoras abastadas, que pretendiam a reprodução de vestidos que viam na Burda alemã, uma espécie de Vogue para gente discreta. A Madame Queiróz, holandesa, com um marreca nas costas e mau feito era uma das suas clientes favoritas. Trabalhava, fumava, era igual ao marido português. Isto despertava em Conceição uma secreta admiração. D. Alice, mulher de um abastado industrial de Famalicão era também uma amiga. De personalidade fraca, Conceição adorava convencê-la a escolher o que achava que lhe assentava bem, deixando-a certa de que a escolha final tinha sido sua. Até aos 70 e muitos anos trabalhou na sua costura e ganhou para os seus alfinetes, como costumava dizer. Nos últimos anos já o fazia mais por amizade e hobby do que por dinheiro. A velha máquina Singer resistiu sempre. A Conceição, a idade foi retirando a precisão dos gestos de modista.
(*) Dedicado à minha avó Conceição, dos olhos azuis e da alma transparente.
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