sexta-feira, 30 de setembro de 2011

A velha Singer (*)

Tinha olhos azuis, claros como a água, quase translúcidos. Olhando fixamente através deles conseguia ver-lhe a alma. Filha de um barbeiro que tinha ganho dinheiro no Brasil, nem o facto de ter uma vida mais confortável do que a pobreza generalizada da aldeia a livrou da escolaridade mínima. As mulheres naquele tempo eram para estar em casa. Com a 4ª classe já sabiam do mundo das letras tudo o que poderiam ambicionar. Ajudou a criar os mais novos, trabalhou no campo, aprendeu a fazer manteiga e queijo.

Com 18 anos casou-se com José. José era filho de um mestre carpinteiro e desde os 10 anos ajudava o pai na oficina de carpintaria de que este era proprietário no Porto. Quis romper com os limites que lhe eram impostos e estudou à revelia do pai, durante a noite. Acabou a escola comercial, mas todos os fins-de-semana regressava às origens. Conheceu Conceição, apaixonaram-se e casaram. O primeiro filho do casal apenas resistiu 24 horas a um mundo cruel. Estranhamente, com o seu quê de mórbido e veneração, conservou até ao fim do seus dias uma fotografia do bebé. A fotografia a preto e branco era de um bébe vestido com um gorro. Foi fotografado já morto. Mas este filho que passou pela sua vida como um cometa era sempre considerado o seu primeiro filho. Tive dois filhos, um não vingou, dizia.

Trabalharam na Exposição Colonial do Porto e quando reuniram dinheiro, Conceição comprou uma máquina de costura Singer. Tinha aprendido costura como todas as miúdas da sua idade, mas sempre revelara talento para as linhas e colchetes. A Singer era, mais do que o seu instrumento de trabalho, o seu passaporte para a independência financeira. Tinha uns cartões impressos que raramente entregava. Conceição Lopes, Modista. O quarto que reservou para atelier de costura era visitado por senhoras abastadas, que pretendiam a reprodução de vestidos que viam na Burda alemã, uma espécie de Vogue para gente discreta. A Madame Queiróz, holandesa, com um marreca nas costas e mau feito era uma das suas clientes favoritas. Trabalhava, fumava, era igual ao marido português. Isto despertava em Conceição uma secreta admiração. D. Alice, mulher de um abastado industrial de Famalicão era também uma amiga. De personalidade fraca, Conceição adorava convencê-la a escolher o que achava que lhe assentava bem, deixando-a certa de que a escolha final tinha sido sua. Até aos 70 e muitos anos trabalhou na sua costura e ganhou para os seus alfinetes, como costumava dizer. Nos últimos anos já o fazia mais por amizade e hobby do que por dinheiro. A velha máquina Singer resistiu sempre. A Conceição, a idade foi retirando a precisão dos gestos de modista.

(*) Dedicado à minha avó Conceição, dos olhos azuis e da alma transparente.

2 comentários:

Fenix disse...

Fernando,

Muito bonito e ternurento!

Não sei se o neto herdou a cor dos olhos, mas quer-me parecer, que a transparência da alma, sim.

Abraço
Ana

Fernando Lopes disse...

Ana,

Agora que fala nisso temo ser vítima de uma degradação cromática. De azuis da minha avó passaram a verdes no meu pai e a castanhos claros no meu caso.
Obrigado pelo seu apoio. Às vezes tenho medo de ser piroso com estes textos mais intimistas, mas na realidade a minha avó está sempre comigo.

Abraço,
Fernando

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